Resolução CNJ nº 492 de 17.3.2023

Estabelece, para adoção de Perspectiva de Gênero nos julgamentos em todo o Poder Judiciário, as diretrizes do protocolo aprovado pelo Grupo de Trabalho constituído pela Portaria CNJ n. 27/2021, institui obrigatoriedade de capacitação de magistrados e magistradas, relacionada a direitos humanos, gênero, raça e etnia, em perspectiva interseccional, e cria o Comitê de Acompanhamento e Capacitação sobre Julgamento com Perspectiva de Gênero no Poder Judiciário e o Comitê de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário.

O “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero” do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), oferece ferramentas e diretrizes para a aplicação de uma lente de gênero na atividade jurisdicional, buscando a efetivação da igualdade e o rompimento com a cultura de discriminação e preconceito.

Parte I: Conceitos Fundamentais

Compreender os conceitos básicos é o primeiro passo para um julgamento com perspectiva de gênero. A tabela a seguir resume as definições centrais apresentadas no protocolo:

ConceitoDefinição
SexoRefere-se às características biológicas (órgãos sexuais, hormônios, cromossomos) usadas para categorizar os seres humanos como machos, fêmeas ou intersexuais. O protocolo o considera um conceito obsoleto como ferramenta analítica para desigualdades, por não abranger as construções sociais.
GêneroTrata do conjunto de características, papéis e expectativas socialmente construídas e atribuídas aos diferentes sexos. É uma ferramenta analítica que permite perceber como essas construções culturais, muitas vezes, geram hierarquias e subordinações.
Identidade de GêneroCorresponde à identificação de uma pessoa com as características socialmente atribuídas a um determinado gênero, que pode ou não estar alinhada ao seu sexo biológico. Pessoas cujo gênero e sexo se alinham são chamadas “cisgênero”, e aquelas em que divergem são “transgênero”.
SexualidadeDiz respeito às práticas sexuais e afetivas dos seres humanos. A heterossexualidade é estabelecida como “padrão”, enquanto outras orientações, como a homossexualidade e a bissexualidade, são frequentemente consideradas “desviantes”.

Parte II: Passo a passo para julgar com Perspectiva de Gênero

O protocolo sugere etapas e questionamentos para auxiliar magistradas e magistrados a exercerem uma jurisdição comprometida com a igualdade.

Etapa/FerramentaDescrição e Pontos de Atenção
Analisar Desigualdades EstruturaisReconhecer que a desigualdade é fruto de hierarquias sociais estruturais que moldam relações interpessoais, institucionais e o próprio direito. Lembrar que a desigualdade de gênero não é única, variando conforme a interseção com outros marcadores como raça, classe e idade.
Identificar Estereótipos de GêneroQuestionar como estereótipos (ideias preconcebidas sobre atributos ou papéis de gênero) podem influenciar a apreciação de fatos e provas. Atenção: Estereótipos podem levar a:
• Minimizar ou supervalorizar provas com base em preconceitos (ex: duvidar do relato da vítima de violência sexual e valorizar seu comportamento prévio).
• Considerar apenas evidências que confirmam a ideia estereotipada (ex: desconsiderar o testemunho de mulheres em disputas de guarda, por serem vistas como “vingativas” ou “destemperadas”).
• Usar ideias preconcebidas como máxima de experiência para dar um fato como certo (ex: negar adoção a casais homoafetivos por um suposto risco ao desenvolvimento da criança).
Considerar a Divisão Sexual do TrabalhoEntender como a atribuição histórica de trabalhos produtivos (público, remunerado) aos homens e reprodutivos (privado, de cuidado) às mulheres gera e reforça desigualdades. Isso impacta a “dupla jornada” feminina, a desigualdade salarial e o chamado “teto de vidro”.
Analisar a Violência de GêneroCompreender que a violência de gênero é um sintoma de uma sociedade estruturalmente desigual. Ela é influenciada por fatores materiais (dependência financeira), culturais (“cultura do estupro”) e ideológicos (misoginia, heteronormatividade).
Avaliar a ProvaTer consciência de que, em muitos casos de violência de gênero, a prova é de difícil produção. A palavra da vítima, especialmente em crimes cometidos na clandestinidade, assume especial relevância probatória.

Parte III: Questões de gênero nos ramos da Justiça

O protocolo demonstra a transversalidade do tema, abordando problemáticas recorrentes em cada ramo da Justiça.

Justiça do Trabalho
TemaProblemáticas e Pontos de Atenção
Desigualdades e AssimetriasA divisão sexual do trabalho perpetua a desigualdade salarial e dificulta a ascensão feminina na carreira. A “dupla jornada” e a menor disponibilidade para horas extras ou viagens reduzem as oportunidades. O “teto de vidro” impede o acesso a cargos de liderança com base em estereótipos.
DiscriminaçãoOcorre em todas as fases do contrato, de forma velada ou direta. Atenção para:
Seleção automatizada: Algoritmos podem reproduzir vieses humanos e perpetuar a exclusão de grupos minoritários.
Fase contratual: Gestantes e lactantes são vítimas de discriminações (ex: mudança de função) decorrentes de um modelo de trabalho pensado para o “homem médio”.
Violência e AssédioO ambiente de trabalho pode ser um terreno fértil para a violência e o assédio, que afetam desproporcionalmente mulheres e meninas. Atenção para:
Microagressões: Práticas como “manterrupting” (interrupção da fala), “mansplaining” (explicações desnecessárias) e “gaslighting” (manipulação de fatos para desqualificar a queixa) criam um ambiente hostil.
Silenciamento: A demora em denunciar não deve ser interpretada como consentimento, pois a vítima pode se sentir impotente ou com medo de perder o emprego.
Segurança e Medicina do TrabalhoNormas de segurança são muitas vezes baseadas no “padrão do homem médio”, invisibilizando riscos específicos para as mulheres.
Segregação Horizontal: A concentração de mulheres em certos setores (cuidado, limpeza) as expõe a riscos específicos, como lesões por esforço repetitivo, que são frequentemente subvalorizados.
Ergonomia: Postos de trabalho padronizados, sem possibilidade de ajuste, podem causar doenças, especialmente considerando as diferenças antropométricas.
Justiça Estadual
TemaProblemáticas e Pontos de Atenção
Violência de GêneroA palavra da vítima possui especial valor probatório, principalmente em crimes que não deixam vestígios. A oitiva de crianças e adolescentes deve ser realizada com cuidado para evitar a revitimização.
Direito PenalAtenção para:
Violência Obstétrica: Práticas violentas durante o parto.
Crimes contra a Dignidade Sexual: Análise crítica de estereótipos que culpabilizam a vítima.
Feminicídio: É crucial não admitir a tese de “legítima defesa da honra”.
Direito de FamíliaAtenção para:
Alienação Parental: Deve-se ter cuidado para que a alegação não seja usada para silenciar denúncias de abuso.
Alimentos e Partilha: Analisar a violência patrimonial e a desvalorização do trabalho doméstico da mulher na contribuição para o patrimônio do casal.
Rede de EnfrentamentoÉ dever do magistrado(a) articular-se com a rede de proteção (serviços de saúde, assistência social etc.) para garantir um atendimento integral e humanizado à mulher em situação de violência.
Justiça Federal
TemaProblemáticas e Pontos de Atenção
Direito PrevidenciárioAnalisar como as regras previdenciárias, aparentemente neutras, impactam desproporcionalmente as mulheres, considerando suas trajetórias laborais mais intermitentes devido à maternidade e ao trabalho de cuidado.
Direito PenalQuestões como o tráfico internacional de pessoas para fins de exploração sexual, que vitimiza majoritariamente mulheres e meninas.
Direito Civil, Administrativo e TributárioA perspectiva de gênero pode revelar desigualdades em diversas áreas, como em políticas de moradia ou na tributação que desconsidera as especificidades da vida das mulheres.
Justiça Eleitoral
TemaProblemáticas e Pontos de Atenção
Cotas de GêneroAdotar postura ativa para afastar subterfúgios como candidaturas fictícias, que visam apenas cumprir formalmente a cota de 30%.
Distribuição de Recursos e PropagandaFiscalizar o cumprimento da distribuição de, no mínimo, 30% do tempo de propaganda e dos recursos do fundo eleitoral para candidaturas de mulheres, como medida para reverter a sub-representação feminina na política.
Justiça Militar
TemaProblemáticas e Pontos de Atenção
Hierarquia, Ordem e DisciplinaRevisitar esses conceitos para que não sejam utilizados para mascarar práticas sexistas, misóginas ou discriminatórias contra mulheres nas forças armadas e polícias militares.
Legislação Penal MilitarO Código Penal Militar é de 1969 e não acompanhou as atualizações do Código Penal comum em relação aos crimes sexuais, estando defasado na proteção às mulheres.
Participação FemininaÉ necessário ampliar a participação de mulheres nos Conselhos de Justiça (escabinato) e em órgãos administrativos, conforme a Resolução nº 255 do CNJ.

Inteiro Teor

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