Lei Complementar

A Lei Complementar (LC) é uma espécie normativa primária, prevista na Constituição Federal, destinada a regulamentar matérias específicas para as quais a própria Constituição exige essa forma legislativa. Caracteriza-se, fundamentalmente, pelo quórum qualificado para sua aprovação – maioria absoluta dos membros de cada Casa do Congresso Nacional – e por ter seu campo material expressamente delimitado pelo texto constitucional. Não há, segundo entendimento predominante do STF e da doutrina, hierarquia entre lei complementar e lei ordinária; o que existe são campos de competência material distintos, ambos com fundamento de validade direto na Constituição.

Fundamentos

  • Constituição Federal de 1988:
    • Art. 59: “O processo legislativo compreende a elaboração de: (…) II – leis complementares;”
      • Parágrafo único: “Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis.” (Exemplo: LC nº 95/1998).
    • Art. 69: “As leis complementares serão aprovadas por maioria absoluta.”
    • Diversos dispositivos constitucionais exigem expressamente Lei Complementar para regulamentar matérias específicas, tais como:
      • Art. 18, § 2º: Período dentro do qual os Estados poderão incorporar-se entre si, subdividir-se ou desmembrar-se para se anexarem a outros, ou formarem novos Estados ou Territórios Federais.
      • Art. 18, § 3º: Criação, incorporação, fusão e desmembramento de Municípios.
      • Art. 22, parágrafo único: Autorização para os Estados legislarem sobre questões específicas de competência privativa da União.
      • Art. 43, § 1º: Condições para integração de regiões em desenvolvimento e composição dos organismos regionais que executarão os planos regionais.
      • Art. 93: Estatuto da Magistratura.
      • Art. 121: Organização e competência dos tribunais e juízes eleitorais.
      • Art. 128, § 5º: Lei orgânica do Ministério Público da União.
      • Art. 131: Organização e funcionamento da Advocacia-Geral da União.
      • Art. 134, § 1º e § 4º: Organização da Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios; normas gerais para a organização nos Estados.
      • Art. 146: Disposições sobre conflitos de competência em matéria tributária, limitações constitucionais ao poder de tributar, e normas gerais em matéria de legislação tributária (ex: Código Tributário Nacional – Lei nº 5.172/1966, recepcionado como LC).
      • Art. 146-A: Critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência.
      • Art. 148: Empréstimos compulsórios.
      • Art. 153, VII, c/c Art. 154, I: Imposto sobre Grandes Fortunas.
      • Art. 155, § 1º, III: Indenização aos Estados pela exportação de produtos industrializados.
      • Art. 155, XII: Normas gerais sobre o ICMS.
      • Art. 156, III, c/c Art. 156, § 3º: Normas gerais sobre o ISSQN.
      • Art. 161: Distribuição de recursos tributários.
      • Art. 163: Finanças públicas.
      • Art. 165, § 9º: Funções, normas de elaboração e organização do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual.
      • Art. 169: Despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
      • Art. 195, § 11: Vedação de moratória ou parcelamento de contribuições sociais em prazo superior a 60 meses.
      • Art. 201, § 1º: Cobertura de eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada no regime geral de previdência social.
      • Art. 202, § 4º e § 6º: Condições para instituição de previdência complementar e requisitos para aporte de recursos em entidade de previdência privada pela União, Estados, DF e Municípios.
      • Art. 237: Fiscalização e controle sobre o comércio exterior.

Controle

  • ADI 2 (Rel. Min. Paulo Brossard, DJ 21/11/1997): Embora não trate exclusivamente de LC, é um precedente fundamental sobre a força normativa dos princípios constitucionais e a necessidade de observância das regras de processo legislativo, aplicáveis às LCs.
  • ADC 1/DF (Rel. Min. Moreira Alves, DJ 16/06/1995): Ao julgar a constitucionalidade da LC 70/91 (COFINS), o STF debateu a natureza das leis complementares e sua relação com as leis ordinárias, reforçando a tese da ausência de hierarquia formal entre elas, mas sim de campos de competência distintos.
  • O controle pode incidir sobre:
    • Aspectos formais: Verificação do respeito ao processo legislativo específico (e.g., quórum de maioria absoluta) e à iniciativa legislativa.
    • Aspectos materiais:
      • Conformidade do conteúdo da Lei Complementar com as normas e princípios da Constituição Federal.
      • Verificação se a matéria tratada pela Lei Complementar é, de fato, reservada a essa espécie normativa pela Constituição. Se uma LC tratar de matéria de lei ordinária, a parte que excede seu campo material pode ser considerada materialmente ordinária. Por outro lado, se uma lei ordinária invadir campo material reservado à lei complementar, ela será inconstitucional.

Enunciados

  • Supremo Tribunal Federal (STF):
    • Súmula Vinculante 10: “Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta sua incidência, no todo ou em parte.” (Aplicável no controle de constitucionalidade de LCs).
  • Superior Tribunal de Justiça (STJ):
    • Súmula 276 do STJ: (Cancelada) Afirmava que “As sociedades civis de prestação de serviços profissionais são isentas da Cofins, irrelevante o regime tributário adotado.” Esta súmula se baseava na LC 70/91, e o debate sobre sua revogação por lei ordinária foi central na discussão sobre a hierarquia entre as espécies normativas. O STF, posteriormente, firmou entendimento de que a LC 70/91, na parte que instituiu a COFINS, era materialmente ordinária.

Precedentes

  • Supremo Tribunal Federal (STF):
    • Tema 54 de Repercussão Geral (RE 377.457): Discutiu a possibilidade de lei ordinária revogar dispositivo de lei complementar que veicula matéria própria de lei ordinária. O STF entendeu que, se a lei complementar trata de matéria para a qual a Constituição não exige essa espécie normativa, seus dispositivos podem ser alterados ou revogados por lei ordinária superveniente.
    • Tema 1.273 de Repercussão Geral (RE 1.450.816): O STF decidirá se vantagem funcional instituída por lei complementar municipal pode ser revogada por lei ordinária, o que tangencia a discussão sobre a natureza (formalmente complementar, mas materialmente ordinária) de certas leis.

Jurisprudência

  • Supremo Tribunal Federal (STF):
    • “Não há hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, mas campos de atuação diversos, segundo a Constituição Federal. Se uma lei ordinária invade matéria reservada à lei complementar, é inconstitucional. Se, ao contrário, lei complementar trata de matéria afeta à lei ordinária, não há inconstitucionalidade, sendo que tal dispositivo poderá ser revogado por lei ordinária superveniente.” (Ex: RE 597.158 AgR, Rel. Min. Eros Grau, Segunda Turma, DJe 27/03/2009).
    • “A lei complementar é exigida apenas quando a Constituição Federal expressamente o determinar. Se a Constituição não fizer tal exigência, a matéria deve ser tratada por lei ordinária.” (Ex: ADI 1.753 MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, DJ 12/09/2003).

Doutrina

  • Conceito e Natureza Jurídica: Para Alexandre de Moraes (Direito Constitucional, Atlas), a Lei Complementar é uma espécie normativa que visa complementar a Constituição em matérias específicas, exigindo um processo legislativo mais rigoroso (maioria absoluta) para sua aprovação.
  • Hierarquia: A doutrina majoritária, acompanhando o STF, entende que não existe hierarquia entre Lei Complementar e Lei Ordinária. Ambas são normas primárias que retiram seu fundamento de validade diretamente da Constituição. A diferença reside no campo material reservado pela Constituição a cada uma delas e no quórum de aprovação.
    • Michel Temer (Elementos de Direito Constitucional, Malheiros) afirma que “a leitura do art. 59 […] indica que as leis ordinárias encontram seu fundamento de validade, seu ser, no próprio Texto Constitucional, tal qual as leis complementares […]. Portanto, não há hierarquia entre a lei complementar e a lei ordinária”.
    • Pedro Lenza (Direito Constitucional Esquematizado, Saraiva) explica que o desrespeito ao campo material reservado pela Constituição à lei complementar gera a inconstitucionalidade da lei ordinária invasora.
  • Quórum de Aprovação: A exigência de maioria absoluta (primeiro número inteiro superior à metade dos membros de cada Casa Legislativa) para aprovação da Lei Complementar (art. 69 da CF/88) confere maior estabilidade e consenso às matérias por ela reguladas.
  • Lei Complementar “Materialmente Ordinária”: A doutrina e a jurisprudência admitem que uma Lei Complementar pode, em parte de seu texto, tratar de matéria que não é reservada constitucionalmente a essa espécie normativa. Nesses casos, esses dispositivos “materialmente ordinários” podem ser alterados ou revogados por lei ordinária posterior.

Correlato

  • Constituição Federal — estabelece as hipóteses em que a Lei Complementar é exigida e seu processo de aprovação.
  • Processo Legislativo — a Lei Complementar é uma das espécies normativas elaboradas através do.
  • Lei Ordinária — distingue-se da Lei Complementar pelo quórum de aprovação (maioria simples) e pelo campo material (residual, aquilo que não for reservado à LC ou a outras espécies).
  • Quórum de Maioria Absoluta — é o requisito para aprovação da.
  • Reserva de Lei Complementar — refere-se às matérias que a Constituição Federal expressamente destina à disciplina por Lei Complementar.
  • Inconstitucionalidade Formal — pode ocorrer se uma Lei Complementar não observar o quórum de aprovação ou outros requisitos do processo legislativo.
  • Inconstitucionalidade Material — pode ocorrer se uma Lei Ordinária invadir matéria reservada à Lei Complementar, ou se uma Lei Complementar tratar de matéria de forma incompatível com a Constituição.
  • Código Tributário Nacional — exemplo de lei ordinária (Lei nº 5.172/1966) recepcionada pela CF/88 com status de Lei Complementar nas matérias em que a Constituição assim exige.