1. Introdução
O processo de execução no direito brasileiro representa um constante campo de tensão entre a satisfação do crédito do exequente e a proteção de um patrimônio mínimo do executado, assegurando-lhe a dignidade e os meios para sua subsistência. Nesse contexto, a “Exceção de Pré-Executividade” surge como um relevante instrumento de defesa que permite ao devedor, sem a necessidade de garantir o juízo, arguir matérias de ordem pública e questões que não demandem dilação probatória.
Este artigo debruça-se sobre uma situação jurídica recorrente e de grande impacto social e econômico: a tentativa de penhora de veículo automotor para a satisfação de uma dívida. A análise, baseada em um caso prático, desdobra-se em duas teses defensivas principais: a primeira, de caráter estritamente processual e patrimonial, foca na nulidade da penhora que recai sobre um bem objeto de alienação fiduciária; a segunda, de cunho social e fundamental, defende a impenhorabilidade do bem por ser indispensável ao exercício profissional do devedor.
O objetivo é, portanto, dissecar a fundamentação jurídica que sustenta ambas as linhas de argumentação, demonstrando como a jurisprudência, especialmente a do Superior Tribunal de Justiça, consolidou um entendimento protetivo que visa equilibrar os interesses em conflito.
2. A nulidade da penhora sobre bem com alienação fiduciária
O instituto da alienação fiduciária em garantia, regido primordialmente pela Lei nº 4.728/1965, estabelece que o devedor fiduciante transfere ao credor fiduciário a propriedade resolúvel de um bem móvel ou imóvel como garantia de uma dívida. O devedor mantém a posse direta do bem, mas a propriedade plena só é consolidada em seu patrimônio após a quitação integral do financiamento.
Dessa forma, enquanto o contrato de financiamento estiver ativo, o bem não integra a esfera patrimonial plena do devedor. Ele pertence, em caráter resolúvel, à instituição financeira credora. Por essa razão, a jurisprudência pátria pacificou o entendimento de que tal bem não pode ser objeto de penhora em execuções movidas por terceiros contra o devedor fiduciante.
A lógica é irrefutável: não se pode penhorar um patrimônio que, juridicamente, pertence a outrem. O Superior Tribunal de Justiça, conforme demonstrado em reiterados julgados, estabelece que a constrição judicial deve recair não sobre o bem em si, mas sobre os direitos aquisitivos que o devedor possui, decorrentes do contrato de financiamento:
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. DESPESAS CONDOMINIAIS. PENHORA DE BEM IMÓVEL. IMPOSSIBILIDADE. CONTRATO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. CONSTRIÇÃO DOS DIREITOS DECORRENTES DO CONTRATO. SÚMULA 83/STJ. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. “Não se admite a penhora do bem alienado fiduciariamente em execução promovida por terceiros contra o devedor fiduciante, haja vista que o patrimônio pertence ao credor fiduciário, permitindo-se, contudo, a constrição dos direitos decorrentes do contrato de alienação fiduciária. Precedentes” (REsp 1 .677.079/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/09/2018, DJe de 1º/10/2018). 2. Agravo interno a que se nega provimento. (STJ – AgInt no REsp: 1819448 SP 2019/0162640-9, Relator.: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 03/03/2020, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 25/03/2020)
Essa abordagem respeita a natureza do negócio fiduciário e, ao mesmo tempo, oferece um caminho para a satisfação do exequente, que poderá sub-rogar-se nos direitos contratuais do executado. A insistência na penhora do veículo físico, e não dos direitos, configura nulidade absoluta da constrição, violando a estrutura legal do instituto e o direito de propriedade do credor fiduciário.
3. A impenhorabilidade do instrumento de trabalho e sua extensão reflexa
De forma subsidiária à tese da nulidade, emerge a proteção conferida pelo Código de Processo Civil (CPC) aos bens indispensáveis ao exercício da profissão. O artigo 833, inciso V, do CPC, declara impenhoráveis “os livros, as máquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício da profissão do executado”.
Essa norma tem por finalidade a tutela do direito ao trabalho e à subsistência do devedor, impedindo que o processo executivo o prive de suas ferramentas essenciais, o que comprometeria sua capacidade de gerar renda e, consequentemente, de saldar suas próprias dívidas.
A questão ganha maior complexidade quando o instrumento de trabalho — no caso em análise, um veículo utilizado por um técnico para visitas a clientes — é também objeto de alienação fiduciária. O STJ, em uma notável evolução de sua jurisprudência, abordou precisamente este ponto. No julgamento do Recurso Especial nº 2.173.633/PR, a Ministra Nancy Andrighi estabeleceu que a proteção da impenhorabilidade se estende de maneira reflexa aos direitos aquisitivos do contrato:
RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. IMPENHORABILIDADE DOS BENS NECESSÁRIOS AO EXERCÍCIO DA PROFISSÃO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. DIREITOS DO DEVEDOR FIDUCIANTE AFETADOS À AQUISIÇÃO DO BEM IMPENHORÁVEL. IMPENHORABILIDADE.
1. Ação de revisão e rescisão contratual em fase de cumprimento de sentença da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 29/8/2023 e concluso ao gabinete em 30/9/2024.
2. O propósito recursal consiste em dizer se: a) o veículo utilizado como ferramenta de trabalho é impenhorável; e b) é possível a penhora de direitos aquisitivos derivados da alienação fiduciária em garantia de bem, por si só, impenhorável.
3. De acordo com o art. 833, V, do CPC, são impenhoráveis os livros, as máquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício da profissão do executado. O referido dispositivo legal tem por finalidade resguardar o direito à subsistência do devedor, que não pode ser privado dos bens indispensáveis ao exercício de sua profissão.
4. Em regra, o carro utilizado pelo devedor para o exercício de sua profissão é impenhorável, nos termos do art. 833, V, do CPC, ressalvadas as exceções previstas em lei.
5. Esta Corte Superior perfilha o entendimento de que é possível a penhora de direitos aquisitivos – de titularidade da parte executada – derivados de contrato de alienação fiduciária em garantia.
Precedentes.
6. A intenção do devedor fiduciante, ao afetar o veículo ao contrato de alienação fiduciária, não é, ao fim, transferir para o credor fiduciário a propriedade plena do bem, como sucede na compra e venda, senão apenas garantir o adimplemento do contrato de financiamento a que se vincula, visando, desde logo, o retorno das partes ao status quo ante, com a restituição da propriedade plena do bem ao seu patrimônio.
7. Os direitos que o devedor fiduciante possui sobre o contrato de alienação fiduciária em garantia estão afetados à aquisição da propriedade plena do bem, de modo que, se este bem for necessário ao exercício da profissão, tais direitos aquisitivos estarão igualmente afetados à aquisição do bem impenhorável, razão pela qual, enquanto vigente essa condição, sobre eles deve incidir, reflexamente, a garantia da impenhorabilidade prevista no art. 833, V, do CPC, ficando assim resguardado o direito do devedor à própria subsistência que o legislador buscou proteger.
8. A impenhorabilidade do veículo necessário ao exercício da profissão se estende, de maneira reflexa, aos direitos aquisitivos derivados de contrato de alienação fiduciária em garantia que tem por objeto o referido bem.
9. Na hipótese dos autos, conforme se extrai do acórdão estadual, a recorrente comprovou que utiliza o veículo em questão para o exercício de sua profissão, motivo pelo qual a impenhorabilidade deve se estender aos direitos aquisitivos derivados do contrato de alienação fiduciária que tem por objeto o referido bem.
10. Recurso especial provido para determinar o levantamento da penhora efetivada sobre os direitos aquisitivos do veículo Honda Fit EXL CVT, placa BEW 5144.
(REsp n. 2.173.633/PR, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 12/11/2024, DJe de 18/11/2024.)
O raciocínio do Tribunal é que os direitos do devedor fiduciante sobre o contrato estão “afetados à aquisição da propriedade plena do bem”. Se o bem final é impenhorável por sua natureza de instrumento de trabalho, os direitos que visam à sua aquisição também devem ser protegidos, sob pena de se esvaziar a garantia legal. Portanto, enquanto vigente a condição de bem essencial à profissão, a impenhorabilidade recai tanto sobre o veículo quanto sobre os direitos creditórios a ele vinculados.
4. Conclusão
A análise dos fundamentos ora expostos revela a existência de uma dupla e sólida barreira jurídica contra a penhora de um veículo alienado fiduciariamente e que serve como instrumento de trabalho.
Primeiramente, a constrição sobre a propriedade do bem é nula de pleno direito, pois este pertence ao credor fiduciário. A execução deve, corretamente, ser direcionada aos direitos aquisitivos do devedor.
Em segundo lugar, e de forma ainda mais protetiva, se o bem é classificado como instrumento de trabalho, a impenhorabilidade prevista no art. 833, V, do CPC, não apenas o protege, mas também se estende, por via reflexa, aos próprios direitos do contrato de financiamento.
A jurisprudência do STJ demonstra um amadurecimento na ponderação dos valores em jogo, garantindo que o processo de execução não aniquile a capacidade produtiva e a dignidade do devedor. A correta aplicação desses entendimentos é essencial para a promoção da justiça e do equilíbrio nas relações entre credores e devedores.