Abandono de função

  • Conceito Geral: Ato ilícito praticado por agente público que consiste em ausentar-se, de forma intencional e injustificada, do exercício de seu cargo, emprego ou função, com o ânimo de não mais retornar às suas atividades. Atinge os princípios da continuidade do serviço público, da eficiência e da legalidade.
  • Natureza Jurídica Híbrida: Configura tanto uma infração administrativa disciplinar quanto um tipo penal, com esferas de apuração e sanções independentes e autônomas.
  • Dimensão de Direito Administrativo (Ilícito Disciplinar)
    • Previsão Legal: Lei nº 8.112/1990 (Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União), aplicável por simetria aos âmbitos estaduais e municipais que a adotem.
      • Art. 132, II: O abandono de cargo é uma das infrações que leva à penalidade de demissão.
      • Art. 138: “Configura abandono de cargo a ausência intencional do servidor ao serviço por mais de trinta dias consecutivos.”
    • Requisitos para Configuração
      • Elemento Objetivo (Material)
        • Ausência ao Serviço: Falta física do servidor ao local de trabalho.
        • Período Ininterrupto: A ausência deve ser superior a 30 (trinta) dias consecutivos. O cômputo se dá em dias corridos.
      • Elemento Subjetivo (Anímico)
        • Animus Abandonandi: Intenção deliberada de abandonar o cargo, de não mais retornar ao serviço. Este é o elemento central que distingue o abandono de simples faltas, ainda que sucessivas.
        • Ônus da Prova: A Administração Pública tem o ônus de comprovar a intenção do servidor, o que geralmente se faz por meio de indícios e presunções (ex: não responder a convocações, não apresentar justificativa plausível). A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entende que, após os 30 dias de ausência, presume-se o ânimo de abandonar, invertendo-se o ônus da prova para o servidor, que deverá comprovar a ausência de intenção.
    • Procedimento para Apuração
      • Processo Administrativo Disciplinar (PAD): A apuração do abandono de cargo deve obrigatoriamente ocorrer por meio de um Processo Administrativo Disciplinar, assegurando-se ao servidor o contraditório e a ampla defesa (CF, art. 5º, LV).
      • Rito Sumário: A Lei nº 8.112/90 prevê um rito sumário para apuração de abandono de cargo e inassiduidade habitual (art. 133).
        • Fases: Instauração, instrução sumária (defesa, relatório) e julgamento.
    • Sanção Aplicável
      • Demissão: A penalidade prevista para o abandono de cargo é a de demissão (Lei nº 8.112/90, art. 132, II).
      • Consequências da Demissão: O ex-servidor fica impedido de retornar ao serviço público federal pelo prazo de 5 anos (Lei nº 8.112/90, art. 137). Não pode ser reconduzido, redistribuído ou removido.
  • Dimensão de Direito Penal (Crime Funcional)
    • Previsão Legal: Código Penal, Título XI – Dos Crimes Contra a Administração Pública.
      • Art. 323: “Abandonar cargo público, fora dos casos permitidos em lei: Pena – detenção, de quinze dias a um mês, ou multa.”
    • Requisitos para Configuração
      • Sujeito Ativo: Crime próprio, só pode ser cometido por funcionário público (CP, art. 327).
      • Tipo Objetivo: A conduta é “abandonar”, que significa deixar o cargo, rompendo o vínculo funcional. Não exige um lapso temporal específico como na esfera administrativa, bastando a efetiva saída com a intenção de não voltar.
      • Elemento Normativo do Tipo: A expressão “fora dos casos permitidos em lei” indica que, se houver autorização legal para a ausência (férias, licenças), o fato é atípico.
      • Elemento Subjetivo: O dolo, consistente na vontade livre e consciente de abandonar o cargo público. Não há previsão de modalidade culposa.
      • Objeto Jurídico: A tutela do regular funcionamento da Administração Pública e a continuidade dos serviços.
    • Formas Qualificadas do Crime
      • §1º – Abandono com Dano à Administração: “Se do fato resulta prejuízo público: Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.” O prejuízo deve ser de ordem patrimonial ou moral para a Administração.
      • §2º – Abandono em Faixa de Fronteira: “Se o fato ocorre em lugar compreendido na faixa de fronteira: Pena – detenção, de um a três anos, e multa.” A localização geográfica qualifica o crime pela maior vulnerabilidade da região.
    • Ação Penal
      • Ação Penal Pública Incondicionada: A persecução penal não depende de representação ou requisição, sendo o Ministério Público o titular da ação.
  • Distinção entre Ilícito Administrativo e Penal
    • Independência das Instâncias: A punição na esfera administrativa (demissão) não depende da condenação na esfera criminal, e vice-versa. A absolvição criminal só repercute na esfera administrativa quando nega a existência do fato ou sua autoria (tese da negativa de autoria ou materialidade).
    • Requisitos: O ilícito administrativo exige um prazo objetivo de 30 dias de ausência. O crime penal não tem prazo definido, focando-se no ato do abandono em si e na intenção.
    • Sanções: A sanção administrativa é a demissão do serviço público. A sanção penal consiste em pena privativa de liberdade (detenção) e/ou multa.