Aborto legal

Aborto legal | Dicionário Jurídico
  • Natureza Jurídica: Hipóteses em que a interrupção da gestação não é punível, seja por exclusão da ilicitude (o fato é típico, mas não antijurídico) ou por atipicidade da conduta (o fato não se enquadra na definição do crime).
  • Fundamento Constitucional Geral: Dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), Direito à vida, à liberdade e à saúde da mulher (CF, art. 5º e 6º).
  • Hipóteses Previstas no Código Penal (Art. 128)
    • Classificação: Causas de exclusão da ilicitude (justificantes).
    • Requisito Comum: Realização do procedimento por profissional médico.
    • I – Aborto Necessário ou Terapêutico
      • Conceito: Interrupção da gestação quando não há outro meio de salvar a vida da gestante.
      • Fundamento Jurídico: Estado de necessidade (CP, art. 24), ponderando o bem jurídico vida da gestante sobre a vida em potencial do feto.
      • Requisitos:
        • Perigo de Vida Atual ou Iminente para a Gestante: A continuidade da gravidez deve representar um risco concreto e inevitável à vida da mulher.
        • Inexistência de Outros Meios: O aborto deve ser a única alternativa viável para salvar a vida da gestante.
      • Procedimento:
        • Consentimento: O consentimento da gestante é, em regra, necessário. Em caso de iminente risco de vida e impossibilidade de consentir, o médico pode agir sem ele para salvar a paciente (CP, art. 146, §3º, I).
        • Laudo Médico: Atestado por, no mínimo, dois médicos, confirmando a condição de risco. Contudo, em situação de emergência, um único médico pode tomar a decisão.
        • Autorização Judicial: Dispensável, por se tratar de uma decisão médica baseada em excludente de ilicitude.
    • II – Aborto Sentimental, Ético ou Humanitário
      • Conceito: Interrupção da gestação resultante de crime de estupro.
      • Fundamento Jurídico: Inexigibilidade de conduta diversa e proteção à dignidade da pessoa humana, evitando que a mulher seja obrigada a suportar os ônus de uma gestação oriunda de ato violento.
      • Requisitos:
        • Gravidez Resultante de Estupro: Abrange o estupro (CP, art. 213) e o estupro de vulnerável (CP, art. 217-A).
        • Consentimento da Gestante: A decisão é exclusiva da mulher.
          • Se incapaz (menor de 18 anos, segundo o Código Civil, ou com transtorno mental): Necessário o consentimento de seu representante legal (pais, tutor ou curador).
      • Procedimento:
        • Palavra da Vítima: A Norma Técnica “Atenção Humanizada ao Abortamento” (Ministério da Saúde) estabelece que a palavra da vítima é suficiente para a realização do procedimento no serviço de saúde.
        • Boletim de Ocorrência (B.O.): Não é um requisito legal para o acesso ao procedimento médico, embora seja importante para a persecução penal do agressor.
        • Autorização Judicial: Totalmente dispensável. A exigência configura-se como barreira indevida de acesso ao serviço de saúde.
        • Atendimento Multidisciplinar: Recomenda-se o acompanhamento por equipe composta por médicos, psicólogos e assistentes sociais.
  • Hipótese Prevista em Decisão Jurisprudencial (Controle de Constitucionalidade)
    • Interrupção da Gestação de Feto Anencéfalo
      • Conceito: Antecipação terapêutica do parto de feto com anencefalia, uma malformação fetal letal que consiste na ausência parcial ou total do encéfalo e da calota craniana.
      • Natureza Jurídica: Fato atípico. O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que não se trata de crime de aborto, pois não há potencial de vida extrauterina a ser protegido.
      • Fundamento Jurídico: Decisão proferida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54.
      • Requisitos:
        • Diagnóstico Médico Certo de Anencefalia: Confirmado por meio de laudo de exame de ultrassonografia, assinado por no mínimo dois médicos.
        • Consentimento Expresso da Gestante: A decisão cabe exclusivamente à mulher.
      • Principais Argumentos do STF (ADPF 54):
        • Dignidade da Pessoa Humana (CF, art. 1º, III): Obrigar a mulher a levar a termo a gestação de um feto inviável impõe a ela um sofrimento psíquico profundo, tratando-a como mero “útero incubador”, o que caracteriza tratamento desumano e degradante.
        • Direito à Saúde e à Autonomia (CF, arts. 5º e 6º): Proteção à saúde mental e física da mulher e respeito à sua autonomia para decidir sobre o próprio corpo e sua vida reprodutiva.
        • Laicidade do Estado (CF, art. 19, I): Decisões jurídicas sobre direitos fundamentais não podem ser baseadas em dogmas religiosos, devendo se pautar por razões públicas e científicas.
        • Atipicidade Material: A conduta não se amolda ao tipo penal de aborto (CP, arts. 124 a 126), pois este pressupõe a interrupção da vida de um ser com potencial de existência autônoma, o que é inviável no caso da anencefalia (“natimorto cerebral”).
  • Debates Atuais sobre a Ampliação dos Permissivos
    • Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442
      • Objeto: Questiona a constitucionalidade dos artigos 124 e 126 do Código Penal, que criminalizam a interrupção voluntária da gestação, pleiteando a sua não recepção pela Constituição de 1988.
      • Tese: A criminalização viola preceitos fundamentais como a dignidade, a autonomia, a saúde, a igualdade e a não discriminação das mulheres, constituindo um problema de saúde pública.
      • Proposta: Descriminalização da interrupção da gestação até a 12ª semana.
      • Situação: Julgamento suspenso no STF.
    • Projeto de Lei 1904/2024
      • Objeto: Altera o Código Penal para equiparar o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples (CP, art. 121), inclusive nos casos de estupro.
      • Críticas (Parecer CFOAB e outros):
        • Inconstitucionalidade: Violação da dignidade humana, do princípio da proporcionalidade (pena da vítima pode ser maior que a do estuprador), e do direito à saúde.
        • Inconvencionalidade: Contraria tratados internacionais de direitos humanos.
        • Retrocesso Social: Impõe barreiras desproporcionais ao aborto legal, afetando principalmente crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, que frequentemente têm a gestação descoberta tardiamente.
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