Abandono intelectual | Dicionário Jurídico
  • Conceito Geral: Tipo penal que criminaliza a conduta do genitor, tutor ou guardião que, de forma injustificada, deixa de prover a instrução primária de seu filho, pupilo ou curatelado em idade escolar. Tutela-se o direito fundamental à educação e o dever da família, em conjunto com o Estado e a sociedade, de assegurar a formação intelectual de crianças e adolescentes.
  • Natureza Jurídica: Crime omissivo próprio, de caráter funcional (no âmbito do poder familiar) e de perigo abstrato, consumando-se com a simples omissão do dever legal, independentemente da ocorrência de um dano efetivo à formação da criança.
  • Fundamentos Jurídicos Superiores
    • Constituição Federal (CF)
      • Art. 227: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito […] à educação […]”.
      • Art. 205: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade […]”.
      • Art. 208, § 3º: “Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola.”
    • Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei nº 8.069/1990)
      • Art. 4º: Reitera o dever da família, comunidade, sociedade e Poder Público de assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à educação.
      • Art. 22: “Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores […]”.
      • Art. 55: “Os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino.”
  • Dimensão de Direito Penal
    • Tipificação Legal (Código Penal – CP)
      • Art. 246: “Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar. Pena – detenção, de quinze dias a um mês, ou multa.”
    • Análise dos Elementos do Tipo Penal
      • Sujeito Ativo: Crime próprio. Somente pode ser praticado por quem detém o dever legal de prover a instrução, ou seja, o pai, a mãe ou o responsável legal (tutor, guardião).
      • Sujeito Passivo: O filho, pupilo ou curatelado em idade escolar. Primariamente a criança ou adolescente. Secundariamente, o Estado, como titular do interesse na formação de seus cidadãos.
      • Conduta Típica (Verbo do Tipo): “Deixar de prover”. É um crime omissivo, que se configura pela inação, pela falha em cumprir a obrigação positiva de garantir o acesso à instrução.
        • Objeto da Omissão: A “instrução primária”. Corresponde atualmente ao Ensino Fundamental, que é obrigatório no Brasil (Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB, Lei nº 9.394/96).
        • Idade Escolar Obrigatória: A faixa etária para a educação básica obrigatória e gratuita é dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade (Emenda Constitucional nº 59/2009; LDB, art. 4º). O crime do art. 246, ao falar em “instrução primária”, é comumente interpretado como se referindo ao Ensino Fundamental (dos 6 aos 14 anos).
      • Elemento Normativo do Tipo: “Sem justa causa”. A existência de uma justificativa plausível e comprovada para a omissão (ex: doença grave da criança que impeça a frequência, comprovada impossibilidade de acesso a uma escola na localidade) exclui a tipicidade do fato. A pobreza, por si só, não constitui justa causa, dado o dever do Estado de prover o ensino gratuito.
      • Elemento Subjetivo: O dolo, que é a vontade livre e consciente de não prover a instrução, conhecendo a obrigatoriedade. Não há previsão de modalidade culposa.
    • Consumação e Tentativa
      • Consumação: O crime se consuma com a omissão prolongada por tempo juridicamente relevante, capaz de caracterizar o descumprimento do dever educacional dentro de um ano letivo.
      • Tentativa: Por ser um crime omissivo próprio, a doutrina majoritária entende ser inadmissível a tentativa.
    • Ação Penal
      • Ação Penal Pública Incondicionada: A persecução penal é promovida pelo Ministério Público, independentemente de representação da vítima ou de qualquer outra pessoa.
    • Causa de Aumento de Pena
      • Art. 247 (Revogado tacitamente em parte): Previa a aplicação em dobro da pena para o crime de abandono de função (art. 245, revogado). A doutrina moderna considera que o parágrafo único deste artigo, que se refere ao não provimento dos “recursos para subsistência”, é o único aplicável ao abandono intelectual:
        • Parágrafo Único: “Se o crime é praticado por tutor, curador, síndico ou liquidatário judicial ou extrajudicial: Pena – detenção, de um a quatro meses, ou multa.” (Aplicação controversa ao art. 246).
  • Consequências em Outras Esferas
    • Direito Administrativo (Setor Educacional)
      • Controle de Frequência: A escola tem o dever de comunicar ao Conselho Tutelar os casos de evasão escolar e de reiteradas faltas injustificadas (LDB, art. 12, VIII).
      • Atuação do Conselho Tutelar: Ao receber a comunicação, o Conselho Tutelar deve notificar os pais ou responsáveis, podendo aplicar as medidas de proteção previstas no art. 129 do ECA, como advertência e obrigação de matricular e acompanhar a frequência do filho.
    • Direito Civil (Poder Familiar)
      • Descumprimento de Dever Inerente ao Poder Familiar: O abandono intelectual configura violação grave dos deveres paternos (ECA, art. 22).
      • Suspensão ou Perda do Poder Familiar: Em casos graves e reiterados, a conduta de abandonar intelectualmente o filho, somada a outras formas de negligência, pode ensejar, mediante processo judicial, a suspensão ou até mesmo a destituição do poder familiar (CC, art. 1.637 e 1.638, II – “deixar o filho em abandono”).
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