Trata-se do Recurso Especial nº 1.935.157 – MT (2021/0125800-1), em uma ação de indenização por danos materiais e morais ajuizada pelo consumidor em decorrência de vícios apresentados em um veículo automotor zero quilômetro. Em 2017, o autor da ação adquiriu uma camionete junto à concessionária segunda ré. O veículo foi vendido com uma garantia de fábrica de 5 (cinco) anos. Contudo, menos de um ano após a aquisição, o automóvel apresentou problemas mecânicos de natureza grave enquanto o condutor realizava uma manobra de ultrapassagem, o que evidencia a severidade e o risco associado ao defeito.
No mesmo dia da ocorrência do fato, o veículo foi encaminhado às dependências da concessionária para os devidos reparos. Entretanto, o conserto não foi efetuado em tempo hábil. O automóvel permaneceu na posse da concessionária por um período de 54 (cinquenta e quatro) dias, sob a justificativa de falta de peças de reposição necessárias para a solução do problema. Durante todo esse ínterim, o consumidor ficou privado do uso de seu bem, sendo que, segundo os autos, nem a fabricante (primeira ré), nem a concessionária (segunda ré) apresentaram uma solução efetiva para o vício.
Diante da inércia das fornecedoras e dos prejuízos suportados, o consumidor viu-se obrigado a arcar com despesas adicionais, como a locação de outro veículo para suas necessidades e a contratação de serviços de frete. Em função desses transtornos, o recorrente ajuizou a referida ação judicial, pleiteando a condenação solidária das rés ao pagamento de uma indenização por danos morais no montante de R$ 35.000,00 (trinta e cinco mil reais) e por danos materiais no valor de R$ 12.400,00 (doze mil e quatrocentos reais), ambos os valores a serem devidamente corrigidos.
Em primeira instância, o Juízo julgou os pedidos parcialmente procedentes. Reconheceu a responsabilidade solidária das rés pelo vício do produto e condenou-as ao pagamento de danos morais fixados em R$ 10.000,00 (dez mil reais). No que tange aos danos materiais, a condenação abrangeu os custos com a locação de veículo e os fretes realizados, porém, restringiu o ressarcimento ao período que se iniciou após o 30º dia de imobilização do veículo.
Inconformado com a limitação imposta à reparação material, o autor interpôs recurso de apelação perante o Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso. Contudo, a corte estadual manteve o entendimento de primeira instância, afirmando que a indenização pelo dano material seria cabível “apenas em relação ao período que ultrapassar os 30 dias previstos no art. 18 do CDC”. Foi contra essa decisão que o consumidor interpôs o Recurso Especial ao Superior Tribunal de Justiça.
Fundamentos
O cerne da controvérsia levada ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) consistiu em definir se a responsabilidade do fornecedor por danos materiais decorrentes de vício do produto deve ser limitada temporalmente, excluindo-se os prejuízos sofridos pelo consumidor durante o prazo de 30 (trinta) dias que a lei lhe confere para sanar o defeito, conforme previsto no art. 18, § 1º, do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
O Ministro Relator, Antonio Carlos Ferreira, em seu voto, rechaçou a interpretação restritiva adotada pelas instâncias ordinárias. O principal fundamento para a reforma da decisão foi o Princípio da Reparação Integral, consagrado no art. 6º, inciso VI, do CDC, que assegura ao consumidor “a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos”. Segundo o Ministro, este princípio é um direito básico do consumidor e orienta todo o microssistema consumerista, não admitindo a imposição de limitações temporais que resultem em prejuízo para a parte vulnerável da relação de consumo.
A análise do STJ estabeleceu que o prazo de 30 dias mencionado no art. 18, § 1º, do CDC, não funciona como uma excludente de responsabilidade ou uma espécie de “franquia” ou “período de tolerância” concedido ao fornecedor para que o consumidor suporte os prejuízos decorrentes do vício sem qualquer tipo de compensação. A interpretação correta do dispositivo, de forma sistemática com os demais preceitos do CDC, é que ele estabelece um marco temporal para o surgimento de direitos potestativos ao consumidor. Ou seja, uma vez transcorrido o prazo de trinta dias sem que o vício seja sanado, o consumidor passa a ter o direito de exigir, à sua escolha: (i) a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso; a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; ou o abatimento proporcional do preço.
O acórdão deixa claro que a faculdade de reparo em 30 dias é um direito do fornecedor, mas o exercício desse direito não o isenta do dever de indenizar o consumidor por todos os prejuízos que este venha a sofrer desde o primeiro dia em que foi privado do uso do bem, caso o vício seja judicialmente reconhecido. Entender de forma diversa, segundo o relator, significaria uma “verdadeira transferência dos riscos da atividade empresarial para o adquirente do bem”, o que contraria a lógica e a finalidade do sistema de proteção ao consumidor.
Para robustecer sua tese, o Ministro Relator invocou a doutrina de Leonardo Roscoe Bessa, que, em sua obra “Código de defesa do consumidor comentado”, defende a tese da reparação integral. Bessa argumenta que, embora o fornecedor tenha o direito de reter o bem para reparo, nasce concomitantemente o dever de indenizar o consumidor pelos prejuízos sofridos nesse período, com base no art. 6º, VI, do CDC. O doutrinador chega a recomendar, como prática preventiva para os fornecedores, a disponibilização de um produto similar ao consumidor durante o período de conserto, a fim de afastar ou mitigar uma futura condenação por danos materiais.
Adicionalmente, o voto citou jurisprudência da própria Quarta Turma do STJ, especificamente o REsp n. 1.297.690/PR, de relatoria do Ministro Marco Buzzi, julgado em 4 de junho de 2013. Nesse precedente, a Corte já havia firmado o entendimento de que a interpretação do art. 18, § 1º, do CDC deve ser sempre favorável ao consumidor, sendo “terminantemente vedada a transferência, pelo fornecedor de produtos e serviços, dos riscos da sua atividade econômica”.
No que tange ao pleito de majoração da indenização por danos morais, fixada em R$ 10.000,00, o STJ aplicou o seu entendimento consolidado, materializado na Súmula n. 7/STJ. A Corte Superior entende que a revisão do quantum indenizatório em sede de recurso especial é medida excepcional, cabível apenas quando o valor arbitrado nas instâncias de origem se mostrar irrisório ou exorbitante, violando flagrantemente os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. No caso concreto, o Tribunal considerou que o valor de R$ 10.000,00 não se enquadrava em nenhuma dessas hipóteses, não destoando dos parâmetros adotados pela Corte em casos análogos, o que impede o reexame da matéria por demandar o revolvimento do contexto fático-probatório dos autos.
Decisão
Diante dos fatos e fundamentos expostos, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento presidido pelo Ministro João Otávio de Noronha e com a participação dos Ministros Raul Araújo, Maria Isabel Gallotti e Marco Buzzi, que acompanharam o relator, decidiu, por unanimidade, dar parcial provimento ao recurso especial.
A decisão reformou o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso no ponto específico da controvérsia. O desdobramento prático e o efeito jurídico principal da decisão foi a condenação solidária das empresas recorridas, ao ressarcimento integral dos danos materiais suportados pelo recorrente.
Isso significa que a indenização pelos gastos com aluguel de veículo e contratação de fretes deverá abranger todo o período em que o consumidor ficou privado do uso de sua camionete, qual seja, os 54 dias em que o bem esteve na concessionária para reparo. A decisão do STJ afastou expressamente a limitação imposta pelas instâncias ordinárias, que restringia o ressarcimento apenas ao período que excedeu os 30 dias iniciais. A apuração do montante exato a ser ressarcido foi relegada à fase de liquidação de sentença, conforme já havia determinado o juízo de primeiro grau.
Por outro lado, o pedido do recorrente para majorar o valor da indenização por danos morais foi negado. O STJ manteve o montante de R$ 10.000,00 (dez mil reais) fixado pelo juízo de origem, por entender que o valor não era irrisório nem exorbitante, aplicando a Súmula n. 7/STJ para não reexaminar a questão. Como resultado deste julgamento, o Superior Tribunal de Justiça fixou a seguinte tese jurídica, que servirá de orientação para casos futuros análogos:
1. O prazo de 30 dias do art. 18, § 1º, do CDC não limita a responsabilidade do fornecedor, devendo o consumidor ser ressarcido integralmente pelos danos materiais sofridos.
2. A indenização por danos morais deve observar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, não cabendo revisão quando o valor não se mostra irrisório ou exorbitante.
A decisão representa um importante precedente na defesa dos direitos do consumidor, reforçando o princípio da reparação integral e estabelecendo que os ônus e riscos da atividade empresarial não podem ser transferidos ao consumidor, mesmo que temporariamente, durante o prazo legal para o conserto de um produto defeituoso.
Referências
REsp n. 1.935.157/MT, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 22/4/2025, DJEN de 29/4/2025.