ADPF 324-DF

Direito do Trabalho. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Terceirização de atividade-fim e de atividade-meio. Constitucionalidade. 1. A Constituição não impõe a adoção de um modelo de produção específico, não impede o desenvolvimento de estratégias empresariais flexíveis, tampouco veda a terceirização. Todavia, a jurisprudência trabalhista sobre o tema tem sido oscilante e não estabelece critérios e condições claras e objetivas, que permitam sua adoção com segurança. O direito do trabalho e o sistema sindical precisam se adequar às transformações no mercado de trabalho e na sociedade. 2. A terceirização das atividades-meio ou das atividades-fim de uma empresa tem amparo nos princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência, que asseguram aos agentes econômicos a liberdade de formular estratégias negociais indutoras de maior eficiência econômica e competitividade. 3. A terceirização não enseja, por si só, precarização do trabalho, violação da dignidade do trabalhador ou desrespeito a direitos previdenciários. É o exercício abusivo da sua contratação que pode produzir tais violações. 4. Para evitar tal exercício abusivo, os princípios que amparam a constitucionalidade da terceirização devem ser compatibilizados com as normas constitucionais de tutela do trabalhador, cabendo à contratante: i) verificar a idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada; e ii) responder subsidiariamente pelo descumprimento das normas trabalhistas, bem como por obrigações previdenciárias (art. 31 da Lei 8.212/1993). 5. A responsabilização subsidiária da tomadora dos serviços pressupõe a sua participação no processo judicial, bem como a sua inclusão no título executivo judicial. 6. Mesmo com a superveniência da Lei 13.467/2017, persiste o objeto da ação, entre outras razões porque, a despeito dela, não foi revogada ou alterada a Súmula 331 do TST, que consolidava o conjunto de decisões da Justiça do Trabalho sobre a matéria, a indicar que o tema continua a demandar a manifestação do Supremo Tribunal Federal a respeito dos aspectos constitucionais da terceirização. Além disso, a aprovação da lei ocorreu após o pedido de inclusão do feito em pauta. 7. Firmo a seguinte tese: “1. É lícita a terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim, não se configurando relação de emprego entre a contratante e o empregado da contratada. 2. Na terceirização, compete à contratante: i) verificar a idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada; e ii) responder subsidiariamente pelo descumprimento das normas trabalhistas, bem como por obrigações previdenciárias, na forma do art. 31 da Lei 8.212/1993”. 8. ADPF julgada procedente para assentar a licitude da terceirização de atividade-fim ou meio. Restou explicitado pela maioria que a decisão não afeta automaticamente decisões transitadas em julgado. (ADPF 324, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 30-08-2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-194 DIVULG 05-09-2019 PUBLIC 06-09-2019)

O Cenário Anterior à ADPF 324: A Súmula 331 do TST

Antes da decisão do STF, a principal referência para a terceirização no Brasil era a Súmula 331 do TST. Editada em 1993 (e atualizada ao longo dos anos), ela estabelecia uma distinção fundamental:

  • Atividade-Meio: Atividades que não constituem o objetivo principal da empresa. A terceirização era permitida para estas funções, como serviços de vigilância, conservação e limpeza.
  • Atividade-Fim: Atividades essenciais e diretamente ligadas ao núcleo do negócio da empresa. A terceirização era considerada ilegal, formando-se o vínculo de emprego diretamente com a empresa tomadora dos serviços.

Essa distinção, embora não prevista em lei, foi a forma que a Justiça do Trabalho encontrou para equilibrar a liberdade de organização empresarial com a proteção ao trabalhador, evitando a precarização e a fraude nas relações de emprego.

A Súmula também estabelecia a responsabilidade subsidiária da empresa tomadora de serviços. Isso significa que, se a empresa terceirizada não pagasse os direitos trabalhistas, a empresa contratante poderia ser acionada judicialmente para arcar com essas dívidas.

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 324

A ADPF 324 foi ajuizada pela Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG) em 2014. O argumento central era que o conjunto de decisões da Justiça do Trabalho, com base na Súmula 331, violava preceitos fundamentais da Constituição Federal.

Argumentos da Requerente (ABAG):

  1. Violação à Livre Iniciativa e à Livre Concorrência (Arts. 1º, IV, e 170 da CF): A proibição de terceirizar a atividade-fim impõe um modelo de produção específico, engessando as estratégias empresariais, reduzindo a eficiência econômica, a competitividade e limitando a liberdade de organização das empresas.
  2. Violação ao Princípio da Legalidade (Art. 5º, II, da CF): Não existia lei que proibisse a terceirização da atividade-fim. A restrição era uma criação jurisprudencial do TST, que teria extrapolado sua competência e legislado sobre a matéria.
  3. Insegurança Jurídica: A distinção entre atividade-meio e atividade-fim era subjetiva e gerava um ambiente de grande incerteza para as empresas, com decisões judiciais conflitantes sobre casos similares.

Argumentos dos Opositores (Amici Curiae como Centrais Sindicais e ANPT):

  1. Proteção ao Trabalho e à Dignidade Humana: A terceirização irrestrita levaria à precarização do trabalho, com salários mais baixos, jornadas mais longas, maior rotatividade e piores condições de saúde e segurança.
  2. Fraude à Legislação Trabalhista: A terceirização da atividade-fim seria um mecanismo para burlar a relação de emprego direta, desresponsabilizando a empresa tomadora e enfraquecendo os direitos dos trabalhadores.
  3. Fragmentação da Categoria e Enfraquecimento Sindical: Trabalhadores terceirizados, atuando lado a lado com os empregados diretos, mas vinculados a outra empresa e outro sindicato, teriam sua capacidade de organização e negociação coletiva diminuída.

A Decisão do Supremo Tribunal Federal: A Tese de Repercussão Geral

Em 30 de agosto de 2018, o Plenário do STF, por maioria de votos (7 a 4), julgou procedente a ADPF 324 e o RE 958.252, fixando a seguinte tese de repercussão geral (Tema 725):

“1. É lícita a terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim, não se configurando relação de emprego entre a contratante e o empregado da contratada.2. Na terceirização, compete à contratante: i) verificar a idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada; e ii) responder subsidiariamente pelo descumprimento das normas trabalhistas, bem como por obrigações previdenciárias, na forma do art. 31 da Lei 8.212/1993”.

Fundamentos da Decisão da Maioria (Votos Vencedores):

  • Inconstitucionalidade da Restrição: A Constituição não impõe um modelo produtivo específico nem proíbe a terceirização. A restrição criada pelo TST feria os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência.
  • Fim da Distinção Atividade-Meio e Fim: O critério de distinção foi considerado impreciso, subjetivo e incompatível com as modernas formas de produção e organização em cadeias e redes.
  • Terceirização como Estratégia de Eficiência: A terceirização foi vista como uma estratégia empresarial legítima para aumentar a eficiência, a especialização e a competitividade, não sendo, por si só, sinônimo de precarização.
  • Manutenção da Proteção: A licitude da terceirização não afasta a proteção aos direitos dos trabalhadores. A responsabilidade subsidiária da empresa contratante foi mantida como mecanismo de garantia, exigindo-se dela o dever de fiscalizar a empresa terceirizada.

Guia Prático e Tabelas de Implicações

A decisão do STF e a posterior legislação (Leis 13.429/2017 e 13.467/2017 – Reforma Trabalhista) consolidaram um novo paradigma para a terceirização no Brasil.

Tabela 1: Glossário de Termos Relevantes na ADPF 324
TermoDefinição e Contexto
ADPFArguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: Ação constitucional para proteger os princípios mais básicos da Constituição contra atos do poder público. Na ADPF 324, o “ato” foi o conjunto de decisões da Justiça do Trabalho que restringia a terceirização.
Atividade-FimAtividade Principal: O conjunto de tarefas que compõem o núcleo essencial do negócio de uma empresa. Ex: a produção de automóveis para uma montadora. Antes da decisão do STF, sua terceirização era vedada pela Súmula 331 do TST.
Atividade-MeioAtividade de Suporte: Tarefas que não estão diretamente ligadas ao objetivo principal da empresa, mas são necessárias para o seu funcionamento. Ex: serviços de limpeza, segurança. Sua terceirização já era permitida.
Responsabilidade SubsidiáriaResponsabilidade Secundária: A empresa contratante (tomadora) só responde pelas dívidas trabalhistas da empresa terceirizada após esta ser acionada e não ter como pagar. É a garantia principal do trabalhador terceirizado.
SúmulaEntendimento Consolidado: Verbete que resume a jurisprudência dominante de um tribunal. A Súmula 331 do TST foi o principal alvo da ADPF 324.
Livre IniciativaPrincípio Constitucional: Garante a liberdade de atividade econômica, permitindo que empresas organizem seus fatores de produção da forma que considerarem mais eficiente, desde que respeitados os limites legais e constitucionais.
“Pejotização”Fraude Contratual: Prática de contratar um trabalhador como se fosse uma pessoa jurídica (PJ) para mascarar uma relação de emprego real, visando a suprimir direitos trabalhistas. A decisão do STF não legalizou esta prática.
Tabela 2: Impactos Práticos da Decisão para Empresas
AspectoImplicação Prática
Planejamento EstratégicoLiberdade Total para Terceirizar: Empresas podem terceirizar qualquer setor ou etapa de sua produção, incluindo a atividade principal. Isso permite focar no core business, reduzir custos fixos e aumentar a especialização.
Contratação de TerceirizadasDever de Diligência (Due Diligence): A empresa contratante tem a responsabilidade de verificar a saúde financeira e a idoneidade da empresa que irá contratar. Deve solicitar certidões negativas de débitos trabalhistas e fiscais e avaliar sua capacidade de cumprir com as obrigações.
Gestão de ContratosFiscalização Contínua: É crucial fiscalizar o cumprimento das obrigações trabalhistas e previdenciárias pela terceirizada ao longo de todo o contrato. Isso inclui exigir comprovantes de pagamento de salários, FGTS e INSS dos funcionários alocados.
Responsabilidade JurídicaManutenção da Responsabilidade Subsidiária: Em caso de ação trabalhista, a empresa tomadora será incluída no processo e, se a terceirizada não pagar a condenação, a tomadora deverá arcar com o pagamento integral dos débitos do período em que o trabalhador prestou serviços.
Tabela 3: Impactos Práticos da Decisão para Trabalhadores
AspectoImplicação Prática
Vínculo de EmpregoVínculo Exclusivo com a Terceirizada: O trabalhador terceirizado é empregado da empresa prestadora de serviços, e não da tomadora. Não há vínculo de emprego direto com a empresa onde ele efetivamente trabalha, mesmo que seja na atividade-fim.
Direitos TrabalhistasManutenção dos Direitos da CLT: O trabalhador terceirizado tem direito a todos os benefícios previstos na CLT (férias, 13º salário, FGTS, etc.), que devem ser pagos pela empresa prestadora.
Garantia de RecebimentoResponsabilidade Subsidiária da Tomadora: Em caso de não pagamento por parte da empresa terceirizada, o trabalhador pode acionar judicialmente a empresa tomadora para receber seus direitos. Esta é a sua principal garantia.
Condições de TrabalhoEquiparação Parcial: A legislação (Lei 13.429/17) garante aos terceirizados que trabalham nas dependências da tomadora as mesmas condições relativas a: alimentação (quando oferecida em refeitórios da tomadora), transporte, atendimento médico, segurança e salubridade.
Representação SindicalVínculo com o Sindicato da Terceirizada: O trabalhador é representado pelo sindicato da categoria da empresa prestadora de serviços, e não da tomadora, o que pode gerar diferenças em acordos coletivos e benefícios.

Conclusão

A decisão do STF na ADPF 324 consolidou uma profunda transformação no mundo do trabalho brasileiro, alinhando a legislação à uma visão de maior flexibilidade e liberdade econômica. Ao eliminar a restrição à terceirização da atividade-fim, a Corte priorizou a livre iniciativa, mas buscou manter a proteção ao trabalhador por meio da responsabilidade subsidiária. Para as empresas, abre-se um leque de possibilidades estratégicas, mas com a contrapartida de um dever reforçado de fiscalização e diligência na escolha de seus parceiros. Para os trabalhadores, o cenário é de adaptação a um modelo onde o vínculo empregatício se dá com a empresa prestadora, sendo a responsabilidade da tomadora uma garantia secundária, mas essencial, para o cumprimento de seus direitos.

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